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INTROSPECÇÃO - RENDEZ VOUS - pt. 10




Uma enorme corrente lacrimal propalava-se por todo rosto que, de tão envelhecido, se enegrecia de inundadas lembranças. Era a solidão. A mais peculiar manifestação de solidão.

Naquela noite, lágrimas ininterruptas brotavam dos olhos de Afonso. As memórias de um amor fantasma corroíam gradativamente a sua alma. O silêncio da dor era sobremaneira estridente. Nunca mais voltará a ver Isabel, o amor inesquecível. Ora, ver, talvez veja. Afinal, é esta finalidade da memória, a verdadeira e única máquina do tempo de que dispõe o ser humano. Lá estava aquele banco, onde a desventurada paixão havia iniciado, onde os lábios se haviam cruzado, num lugar quase inóspito. Afonso ia, regularmente, àquele sítio. Pouca gente repousava o corpo naquele lugar. Certa vez, ele viu um vulto em meio a escuridão.

— Belita, minha dona, eu sabia que tu ias voltar. Deus ouviu enfim as minhas orações — dizia Afonso em júbilos, enquanto se aproximava cada vez mais descontente do ente que já transparecia desânimo.

— Ó Pedro, está alguém no teu quintal a subir a árvore e a chamar por uma mulher— alertou Maria ao proprietário, espreitando da janela do quarto.

— Não está a chamar por uma mulher, é a própria árvore que ele chama. O jardineiro, Afonso, passa o tempo a conversar com as árvores durante a noite.

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