Passaram-se seis meses desde a inexplicável morte de Afonso. A póstuma revelação da homossexualidade do primogénito ainda assombrava a família. O pai, agora reformado da vida militar, refugiava-se na busca de prazeres que não mais encontrava nas funéreas paredes de casa. Uma casa que já fora um lar. Assim que o Sol se punha, ligava para Pedro, o mecânico, que sempre se mostrava prestativo. Iam juntos divertir-se algures no bairro do Povoado, na Samba. Durante o percurso, debatiam a questão de os portugueses terem maior margem de manobra que os nativos no País e as formas neocoloniais de inferiorização cultural praticadas pelo próprio Angolano contra os compatriotas.
— Antigamente, depois que um escravo obtinha a carta de alforria, ele retomava a casa e cultuava a cultura esclavagista do ex-dono. A inferioridade em relação ao patrão convertia-se em superioridade em relação ao irmão. A língua e os modos do senhorio transferiam-se para a vassalagem. A grande estratégia colonial era: liberte o homem, ele aprisionar-se-á novamente e os outros seguirão — argumentou o velho todo convicto.
— Está a me dizer que nós desejávamos ser escravos?! Isso é um absurdo — respondeu Pedro, desdenhando o argumento do amigo.
— Nada disso, estou a dizer algo pior ainda. Nunca houve vontade de obter a liberdade. O escravo amava demasiado o sistema de escravidão patronal para o romper. É verdade sim que o escravo lutou e matou muitos dos que o acorrentavam, entretanto não o fez para emancipar-se ontológica e culturalmente. Fê-lo porque precisava...desculpa. Fê-lo porque desejava a atenção e o respeito do colono. À semelhança de um menino que quebra de propósito uma peça vitral como um prato ou um jarro; ele não o faz por odiar a mãe, mas para chamar a atenção dela.
— Perdão, kota. Este exemplo não se encaixa nem um pouco — replicou Pedro decepcionado com a tentativa de o interlocutor equiparar a escravidão à meninice.
— Seja como for, amigo. O ponto fulcral é que ninguém deseja a liberdade. Desejamos o poder. Ser livre e postergar a possibilidade de actuar sobre os outros não é o forte da humanidade. Queremos sempre ter vantagem sobre os outros. Toda forma de relação humana é uma relação de poder — inferiu o velho com uma “certeza pirrónica” e incorrigível.
O silêncio instalara-se por alguns segundos. Repentinamente, num gesto brusco, o velho volta-se para o assento traseiro do carro e repara nas peças de roupa feminina amarrotadas. O forte cheiro que exalavam denotava que tinham sido usadas há poucas horas.
— Reconheço esse perfume. Tens bom gosto. De quem são essas roupas,
malandrinho? Parecem-se muito com as que ofereci à minha mulher — disse o velho
num trejeito de desconfiança.
«Claro que parecem. Toda forma de relação humana é uma relação de poder», pensou Pedro, o mecânico.
(...).
«Claro que parecem. Toda forma de relação humana é uma relação de poder», pensou Pedro, o mecânico.
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