A
morte de Afonso deixou a família sem eira nem beira. «Era um homem de cérebro
profícuo, bastante reflexivo e sonhador», pensava Mendes, o irmão que o seguia
na linhagem e que, por vias travessas e logros da adolescência, rumou para
marinha. A mãe chorava de tão inconsolada, foi a Afonso que confiou um bom
futuro. Parecia ter bom futuro; ao menos, o desempenho académico asseverava tal
facto. O coração estóico e o olhar militarizado do pai elidiam até a mínima
névoa de dor que transparecesse; alguns o julgavam insensível, augurava-se uma
reacção menos retesa e mais humana.
Num
súbito ataque cardíaco, a primogenitura de nove irmãos “desmapeou-se” para
Sempre. O que é precisamente Sempre? Nunca mais. Assim é o cíclo vital: nunca
mais será sempre. Amigos, colegas, vizinhos e outros (que não conheço)
recordavam alguns momentos passados com o ex-vivo.
—Foi
uma boa pessoa. Deus o manterá em Sua memória— disse uma possível amiga, mesmo
sabendo que Afonso era descrente. Os outros concordaram. Cada um na sua vã
tentativa de personificar a mentalidade divina procurou amnistiar as falhas de
carácter do ex-vivo. Falhas de carácter todos as temos.
—Foi
uma honra conhecer a genialidade de Afonso, os melhores morrem cedo. Mas o céu
jubila essa alma iluminada—retumbou alguém a insulsa frase. Foucault estava
errado, o que dista a genialidade da loucura não é o sucesso, mas sim a
morte.—Sempre muito empenhado em aprender mais e mais. Morreu Camões.
Isabel,
a inconsolável amada, chorava feito uma cirene. Vivia a angústia de nunca ter
experimentado a virilidade do parceiro. A saudade que sentia era mais lasciva.
Pedro, o mecânico, prestativo como sempre fora desde os tempos de infância, foi
a morgue fazer a última vontade do bom companheiro. Ajustou o fecho das calças.
— — Já está, meu amado. Mesmo morto, continuas a ter a bunda mais gostosa de sempre (…) — disse Pedro, o mecânico, prestativo como sempre.
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