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INTROSPECÇÃO - VEROSIMILHANÇA - pt. 11[CONTINUANDO]


Desta vez, com olhar mortiço, lábios ressequidos e alma resignada, Afonso fitava as fotos de Isabel que lhe mostravam toda implacabilidade do tempo. Ressentia com ardor. Entrementes, o privilégio de construir cenários eróticos propiciava à carne o mais pervertido alívio da punheta. 

Era hora de se redimir, ao termo de três dias seria um octogenário infeliz. Não bastava a crise passional que nele se instalara desde os tempos da adolescência, uma nova crise orquestrada por ricaços apossou-se dos seus bolsos

A jardinagem não dava para cobrir todas as despesas. A formação superior em Direito de nada lhe valeu. Foram cinco anos de marranço, agora, resumidos em um papel inútil agrafado à parede.

— É chegado o momento da redenção. Tantos anos atrás de uma puta, agora isso. Cada vez mais lixado por esta droga ditatorial implantada por um conluio de sacanas privilegiados. Este definitivamente não é o meu tempo, — resmungava com ele mesmo, enquanto se atinha nas amarras — estou farto disto tudo. Que a terra me seja leve.

Os pombos corriam pelos céus para anunciar o acto suicida premeditado pelo homem preto. Em poucos segundos todos seres aéreos e celestes presenciavam a montagem do pelourinho pelo vão da janela. Estava consumado. O Universo determinista não conseguiu prever o que se tinha sucedido naquele casebre, a Morte desconhecia a estranha morte do homem. Não era a sua data-limite. A Ciência não tinha ciência do fenómeno, facto que aumentava o lucro das igrejas. O homem morreu antes de apertar as amarras.


Somente uma pessoa podia explicar isso, alguém que tivesse sentido a angústia do homem, que tivesse dado a vida ao homem, alguém como você que transformou este conto em um cenário quase real, olhando além das marcas gráficas. Foi você quem matou Afonso.

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